terça-feira, setembro 20, 2005

Leila Míccolis


Gata,
mas não borralheira,
nem mansa.

Gata,
que vira fera
se no seu rabo
alguém pisa,
é poeta,
não poetisa.

Do seu ninho,
feito em blocos,
não tem vergonha
de dizer palavrões.
Não tem bens
nem alqueires,
não tem medo
de nada.

Gata
escaldada
que ronrona
versos
no cio impudico.

Iguais a ela
há centenas,
mas, pra encurtar prosa,
somente ela é
Leila Míccolis.

Solange


Esse poema é dedicado a Leila, que, além de fazer muitas atividades relacionadas à cultura, é poeta, pois ela diz que "em poetisa todo mundo pisa"...
Visitem a página cultural www.blocosonline.com.br , onde, desde 1996, Leila Míccolis e Urhacy Faustino fazem um ótimo trabalho de divulgação da cultura brasileira.

Uma pequena biografia:
Leila Miccolis nasceu no Rio de Janeiro. É editora, professora de roteiro de televisão, promotora cultural e artista performática. Publicou, entre outros, os livros: Em perfeito mau estado, Editora Achiamé, Rio de Janeiro, 1987; Do poder ao poder - alternativas na poesia e no jornalismo nos anos 60, Editora Tchê, Rio Grande do Sul, 1987; O bom filho a casa torra, editoras Edicon e Blocos, São Paulo e Rio, 1992; Achadas e Perdidas e Sangue cenográfico, Editora Blocos, Rio de Janeiro, 1997.


*Foto e biografia na página:
http://www.secrel.com.br/jpoesia/lmiccolis.html

terça-feira, julho 19, 2005

Gabriel, meu filho


Inocência


Essa parte inteira de mim
nada sabe do instante
que passa pelo seu corpo
que cresce
nas fotografias diárias

Tampouco sabe das palavras do mundo
avessas ou fecundas
ditas ao vento
ou escritas na memória
e no papel

Imerso ainda em fonemas sem assombro,
nada sabe do futuro
de amanhã ou depois:
meu filho brinca
no tempo sem hora
que cerca seu momento
agora.

Solange Firmino



quinta-feira, julho 07, 2005

Não procure...



Não procure por mim
no chão alienado
das esquinas

Procura nos murmúrios
dos ventos livres
e impetuosos

Procura no sem-rumo
dos céus sem cor
à espera de arco-íris

Procura nos raios de sol
que envolvem
as distâncias

Procura no espaço inexplorado
que flutua acima
das formas passageiras

Solange Firmino



Imagem: Filomena Fonseca

sábado, junho 18, 2005

Palavras... por Manoel de Barros

Somos parte da natureza. E, do mesmo modo, somos parte das palavras também. Quantas vezes uma palavra interrompe a gente e aparece? Quantas vezes ela se impõe sem que possamos entender por quê? Uns pensam que é mediunidade, mas é a palavra que fala em nós. Para um poeta,
a palavra que se impõe é mais forte que o sentido.

terça-feira, maio 31, 2005

Van Gogh


"Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh"

Manoel de Barros Posted by Hello

Árvore



* Foto tirada por mim no Jardim do Palácio da República.
Minha árvore preferida, Ficus Religiosa, ou algo parecido.
O poema é do Manoel de Barros.


Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.

Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidade pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã
no talo.)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também
sabedoria mineral.
Posted by Hello

sábado, maio 14, 2005

Prece noturna


Quem escuta nossa queixa?
A noite dorme.
A sombra é cega.
A lágrima é inútil.
Os versos soltos se escondem
nos umbrais.
Cortam como lâmina,
mas nada dizem
na solidão das ruas.
Em preto e branco,
cegos tateiam no firmamento
traçado no vácuo.
Meu sono perdido
amanhece no avesso.
Quem escuta minha prece?


Solange Firmino


* Imagem: "Starry night", de Van Gogh.

terça-feira, março 29, 2005

De palavras



Gastei uma hora pensando em um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.  [Drummond] 

Minhas palavras escorregaram para dentro.
quando as busco, ouço ecos dispersos que procuram por uma frase completa e definitiva.
Por indigestão de palavras, emudeço-me.
Engoli uma borboleta e virei casulo de mim.
 
[Nanda]


Larva-palavra
que cabe inteira
no clausuro do eu
o ritmo sobe
do abismo interno
casulo
prestes a acordar
e desata em
poema-borboleta

Solange Firmino


Apanhador de poemas


“Um poema sempre me pareceu algo assim como um pássaro engaiolado... E que, para apanhá-lo vivo, era preciso um cuidado infinito. Um poema não se pega a tiro. Nem a laço. Nem a grito. Não, o grito é o que mais o espanta. Um poema, é preciso esperá-lo com paciência e silenciosamente como um gato. É preciso que lhe armemos ciladas: com rimas, que são o seu alpiste; há poemas que só se deixam apanhar com isto. Outros que só ficam presos atrás das quatorze grades de um soneto. É preciso esperá-lo com assonâncias e aliterações, para que ele cante. É preciso recebê-lo com ritmo, para que ele comece a dançar. E há os poemas livres, imprevisíveis. Para esses é preciso inventar, na hora, armadilhas imprevistas.”

Mário Quintana


Imagem: ilustração de Vera Basile feita para o livro “O apanhador de poemas”, de Mario Quintana

sexta-feira, março 25, 2005

Palavras - Manoel de Barros

Veio me dizer que eu desestruturo a linguagem. Eu desestruturo a linguagem? Vejamos: eu estou bem sentado num lugar. Vem uma palavra e tira o lugar debaixo de mim. Tira o lugar em que eu estava sentado. Eu não fazia nada para que uma palavra me desalojasse daquele lugar. E eu nem atrapalhava a passagem de ninguém. Ao retirar debaixo de mim o lugar, eu desaprumei. Ali só havia um grilo com sua flauta de couro. O grilo feridava o silencio. Os moradores do lugar se queixam do grilo. Veio uma palavra e retirou o grilo da flauta. Agora eu pergunto: quem desestruturou a linguagem? Fui eu ou foram as palavras? E o lugar que retiraram debaixo de mim? Não era para terem retirado a mim do lugar? Foram as palavras pois que desestruturaram a linguagem. E não eu.

Manoel de Barros