quinta-feira, novembro 23, 2006

Criando laços

“A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.”
[Samba da Benção, Vinícius de Moraes]

Eu já disse aqui que não podemos dizer que a internet afasta as pessoas, quando muitas estão juntas por causa dela. Na ocasião daquele texto, comemoramos durante vários dias o aniversário da Leila Míccolis na sua comunidade no Orkut . Pessoas do Brasil e do mundo estiveram “presentes”em uma festa que só foi possível pelo tipo de encontro que a internet pode proporcionar.
Encontros sempre aconteceram, mas não com a quantidade de pessoas com as quais podemos nos tornar amigas nos chamados “ sites de relacionamento”. Nem com a forma com que fazemos. Não clicamos nas pessoas nas ruas e as adotamos como fazemos na internet. Ninguém entra em um ônibus achando que vai ficar amigo do passageiro do banco de trás ou do motorista. No Orkut as pessoas entram em tópicos que dizem “adicione a pessoa antes de você”. Pode aparecer alguém e dizer “vou adicionar todos vocês desse tópico”. Imaginem a situação no ônibus: “Atenção passageiros, não estou vendendo bala, quero ficar amigo de todos. Aceito MSN , Yahoo Messenger e afins”.
Nas ruas, só vemos as pessoas. Não existe um perfil colado na testa dizendo as qualidades e o álbum de fotos das pessoas. Não temos a mesma coragem de abordar pessoas como temos ao abordar perfis na internet, onde parece natural abordá-las em suas páginas, porém de modo diferente de como conversamos no ponto de ônibus ou no supermercado. Mas a internet também é um espaço público e muito se tem discutido, como falei aqui , sobre quem bisbilhota o espaço alheio sem o mínimo de educação.

(...)

Solange Firmino

* Leia o texto integral na coluna Orkultural n° 30.

domingo, novembro 19, 2006

Quíron, o centauro imortal

Crono uniu-se à ninfa Fílira na forma de cavalo. Dessa união nasceu Quíron, o primeiro centauro. Os centauros tinham tronco e cabeça de homem e o restante do corpo de cavalo. Não eram imortais, porém, por ser filho de um deus, Quíron era imortal.
Os centauros não eram maus, mas muitos tinham fama de violentos, como mostra o episódio que conta seu lado animalesco, a batalha com os lápitas no casamento de Hipodâmia e Pirito. Na festa, um dos centauros estava bêbado e tentou violentar a noiva. Outros centauros tentaram fazer o mesmo e a festa virou uma bagunça, com vários centauros mortos. Nem todos os centauros eram grosseiros, como sabemos pelo exemplo de Quíron.
Abandonado pelos pais, Quíron teve o deus Apolo como o mentor que lhe transmitiu conhecimentos, por isso ficou conhecido também como mestre na arte da medicina. Quíron vivia em uma gruta, que transformou em escola onde educou muitos heróis nos ritos iniciáticos. Vários foram os educadores dos heróis, mas o educador modelo foi Quíron.
(...)
Solange Firmino
Leia o texto na coluna Mito em Contexto, em Blocos online.

Imagem: Centauro contra os Lápitas, detalhe de uma metopa do Museus da Acrópole.

sábado, novembro 18, 2006

O “arrumador de palavras” Nel Meirelles



Essa expressão foi escrita pelo poeta Nel Meirelles em um bate-papo que tivemos em 2005. Dizia ele que poeta parecia título acadêmico e que preferia se autodenominar “arrumador de palavras”. Em vez de falar dele, acho mais interessante que leiam um pouco dessa conversa.

Esse tópico é uma homenagem ao poeta, que morreu essa semana.


20/8/2005


As palavras

Solange: você levantou uma questão muito interessante. Gramática e liberdade poética.
Não vejo antagonismo entre as duas vertentes. Eu procuro escrever de forma correta, respeitando regras, uso dicionário - se for preciso. Não que eu seja engessado, mas entendo que quando se escreve para que outras pessoas leiam (principalmente no Brasil onde a educação é relegada a plano secundário) de alguma forma há uma contribuição para o conhecimento de quem lê. Tenho cuidado sim de preservar a língua. Essa é uma preocupação primordial em mim.

Por outro lado, não me sinto "dominado" pelas palavras/regras e não permito que me transformem em escravo. Mas também não as escravizo. Digamos que somos sócios nas trilhas da poesia.:) Pode ser que exista uma relação simbiótica envolvida, talvez eu seja realmente um "vampiro", como nesse poeminha:

vampiro

sou inocente
no destroçar
das veias da
poesia

quando escrevo
sangro as palavras
e entrego a
h e m o r r a g i a


Agora, não acho que "licença poética" me permita escrever "nós vai", " a gente semos" e coisinhas assim :)

20/8/2005

Ainda a palavra...

Oi Solange. Concordo inteiramente com meu xará [Manoel de Barros]. Tudo tem seu lugar na poesia e há poesia em tudo. Em qualquer objeto que você veja, vai encontrar certamente poesia.

A "pele de mariposa" é um exemplo sim, assim como outros objetos que existem nos meus poemas. Os objetos são capazes de produzir emoções, logo contém poesia. Um pássaro que voe por entre a folhagem de uma árvore, uma lâmpada apagada em um poste, um barco no mar, uma pipa empoleirada nos fios de eletricidade. A questão é enxergar e tentar transmitir nos poemas essa poesia toda.

Então posso acreditar que a poesia está nas coisas e os olhos dos poetas conseguem enxergá-la. O mesmo posso dizer do berimbau. A liberdade da corda é um canto de poesia. Por mais que o arco tente tolher essa liberdade, não consegue.

Manoel de Barros é o mestre em desinventar objetos e recriá-los com novas funções e novos sentidos. Eu penso mais em "desconstruir" objetos. Quando digo, por exemplo,

viagem

um barco
arrasta
a paisagem


Não é uma função do barco arrastar paisagens, mas desconstruindo-o e reconstruindo dando esta nova funcionalidade, posso arrastar o mundo com ele. Talvez haja uma semelhança entre "desinventar" e "desconstruir", mas o conceito básico é diferente. Tudo pode ser desconstruído, tudo pode ser desinventado. Até mesmo os seres animados.

calix

a gaivota
desenha no meio
do horizonte
o til do não

no sim das montanhas
dormem os pontos
de interrogação



31/8/2005

Sobre autocrítica/direitos autorais


A questão da autocrítica é complicada, a de reconhecer o próprio talento então.. nossa! Falando muito sinceramente eu não estou convencido que tenha isso a que chamam de talento. Me considero - e sempre disse isto - um "arrumador de palavras". Também não gosto de me denominar "poeta" . E confesso que acho o fim da picada quando alguém se assina Fulano de Tal, poeta. Parece um título acadêmico.. rs

O que eu sei é que sou muito mais severo comigo do que com o resto do mundo, Não sei se é o tal do perfeccionismo atuando ou se é o reconhecimento das minhas limitações. E concordo contigo plenamente: é muito mais fácil enxergar talento e qualidade em outras pessoas.

A questão da crítica me é bastante prazeirosa. Gosto de ser criticado. Tenho duas ou três amigas que sempre criticam meus posts no Fala Poética, normalmente por e-mail e sempre achei tudo muito pertinente. É melhor alguém te apontar erros e desacertos do que aplaudir o tempo todo. Mas espera! Gosto e preciso dos aplausos também.. rs sou humano.:)

Voltando à crítica: o que eu não aceito são ataques pessoais. Ou seja, o que escrevo está sujeito a críticas, mas eu enquanto pessoa só posso ser criticado por quem me conhece de verdade, por quem convive comigo, concorda?

E acrescento mais uma coisa que me ocorreu agora: crítica deve ser feita por quem tem conhecimento técnico e/ou sensibilidade artística para tal. Há algum tempo atrás participei de uma lista dessas em que os escritos vem formatados, cheios de luzinhas brilhantes e coisa e tal.

Alguém da lista perguntou assim: "mas isso é poesia? cadê as rimas?". Ou seja... :)

caleidoscópio I

a manhãzinha
é feito ladeira
de pedra
que formiga
nos meus olhos

sou polifônico
de palavras e sopros
do sol de agora

(a música verdeja
lá fora)



Texto publicado também em Blocos online.

Imagem: do blog principal do poeta, Fala Poética.

sexta-feira, novembro 03, 2006

O tempo é um pássaro de vidro


Carlos Machado, editor do Poesia.net, onde estou também, lançou em setembro de 2006 seu primeiro livro de poemas, Pássaro de Vidro. Vale a pena sua leitura.

O tempo é um pássaro de vidro


Ampulheta é gaiola de areia que mantém o tempo-pássaro preso. A digestão do tempo não tem excreções. A engrenagem do tempo não tem segunda dentição. O tempo nos fere como segunda pele. O tempo que nos veste, nos deixa nus. O tempo é folha seca, e folhas secas caem independente da vontade, mesmo assim, o poeta diz: 

"desfolho 
uma a uma 
as pétalas do dia"


O tempo forma nossa realidade. O tempo é objeto de reflexão de historiadores, cientistas e poetas. Desvendar o tempo é desvendar a nós mesmos. Pensar o tempo através de imagens poéticas é dominá-lo de certa forma; mesmo que ele ainda escape como um pássaro em voo, detemos sua natureza, frágil como vidro. 

O poeta percebe a sutileza entre igualdade/desigualdade no tempo que dizemos ser único, mas temos dúvidas, porque repetimos incansavelmente a realidade junto com os ponteiros do relógio: 

"não dormes: 
teu único  
repouso 
é descobrir-te 
em cada momento 
sempre  
desigual a  
ti mesmo" 

Mas não só os ponteiros são angustiantes medidas dos nossos passos. Para o poeta, o relógio digital também 

"tem ar de quem não erra"

O tempo do poeta não é simplesmente a imagem de um pássaro preso na gaiola, nem é um pássaro migrando por instinto, que voa para não mais voltar.
Para desvendar o tempo do poeta é preciso desvendar a anatomia do seu pássaro de vidro. O pássaro é o tempo com seu "bater de asas", essa "ave estranha", "enigma com asas", que "resguarda tudo".

Se não sabe que pássaro é o tempo, renda-se a ele como o poeta se rendeu: 

"e me rendo 
ao espaço 
do pássaro 
de vidro"

Deixa que ele ouse, que vibre, como pede o poeta: 

"Deixa que ele 
pouse 
vidro manso 
em tua mão 
jóia fria 
entre os dedos"

Mais que deixar que o tempo-pássaro pouse, é voar junto, mesmo sabendo da "condição ambígua", da "falsa noção de equilíbrio". Mesmo se esborrachando "sem tambor nem auxílio", vai como pássaro-sísifo outra vez voar e viver, consciente do vidro que quebra, porque os cacos são folhas secas, os cacos aguardam a segunda dentição, os cacos são a digestão do tempo, 

"o resto são musgos do tempo".


Solange Firmino

Pássaro de vidro (3)

o pássaro é cego
e cego é quem
se agita
em seu espaço
ambíguo

esse espaço
de incessante
tarde nua

onde o voo
risca um traço
branco
de vidro no vidro

Carlos Machado