sexta-feira, novembro 03, 2006

O tempo é um pássaro de vidro


Carlos Machado, editor do Poesia.net, onde estou também, lançou em setembro de 2006 seu primeiro livro de poemas, Pássaro de Vidro. Vale a pena sua leitura.

O tempo é um pássaro de vidro


Ampulheta é gaiola de areia que mantém o tempo-pássaro preso. A digestão do tempo não tem excreções. A engrenagem do tempo não tem segunda dentição. O tempo nos fere como segunda pele. O tempo que nos veste, nos deixa nus. O tempo é folha seca, e folhas secas caem independente da vontade, mesmo assim, o poeta diz: 

"desfolho 
uma a uma 
as pétalas do dia"


O tempo forma nossa realidade. O tempo é objeto de reflexão de historiadores, cientistas e poetas. Desvendar o tempo é desvendar a nós mesmos. Pensar o tempo através de imagens poéticas é dominá-lo de certa forma; mesmo que ele ainda escape como um pássaro em voo, detemos sua natureza, frágil como vidro. 

O poeta percebe a sutileza entre igualdade/desigualdade no tempo que dizemos ser único, mas temos dúvidas, porque repetimos incansavelmente a realidade junto com os ponteiros do relógio: 

"não dormes: 
teu único  
repouso 
é descobrir-te 
em cada momento 
sempre  
desigual a  
ti mesmo" 

Mas não só os ponteiros são angustiantes medidas dos nossos passos. Para o poeta, o relógio digital também 

"tem ar de quem não erra"

O tempo do poeta não é simplesmente a imagem de um pássaro preso na gaiola, nem é um pássaro migrando por instinto, que voa para não mais voltar.
Para desvendar o tempo do poeta é preciso desvendar a anatomia do seu pássaro de vidro. O pássaro é o tempo com seu "bater de asas", essa "ave estranha", "enigma com asas", que "resguarda tudo".

Se não sabe que pássaro é o tempo, renda-se a ele como o poeta se rendeu: 

"e me rendo 
ao espaço 
do pássaro 
de vidro"

Deixa que ele ouse, que vibre, como pede o poeta: 

"Deixa que ele 
pouse 
vidro manso 
em tua mão 
jóia fria 
entre os dedos"

Mais que deixar que o tempo-pássaro pouse, é voar junto, mesmo sabendo da "condição ambígua", da "falsa noção de equilíbrio". Mesmo se esborrachando "sem tambor nem auxílio", vai como pássaro-sísifo outra vez voar e viver, consciente do vidro que quebra, porque os cacos são folhas secas, os cacos aguardam a segunda dentição, os cacos são a digestão do tempo, 

"o resto são musgos do tempo".


Solange Firmino

Pássaro de vidro (3)

o pássaro é cego
e cego é quem
se agita
em seu espaço
ambíguo

esse espaço
de incessante
tarde nua

onde o voo
risca um traço
branco
de vidro no vidro

Carlos Machado

2 comentários:

Anônimo disse...

Sol, espetacular a tua resenha! Adorei o poema de Carlos Machado e o site. Tem poemas lindos!
Obrigada querida!

Beijos mil :-)

Marco disse...

Belos poemas! Fragilidade do vidro na ousadia e risco do voo, um adolescente