sábado, novembro 18, 2006

O “arrumador de palavras” Nel Meirelles



Essa expressão foi escrita pelo poeta Nel Meirelles em um bate-papo que tivemos em 2005. Dizia ele que poeta parecia título acadêmico e que preferia se autodenominar “arrumador de palavras”. Em vez de falar dele, acho mais interessante que leiam um pouco dessa conversa.

Esse tópico é uma homenagem ao poeta, que morreu essa semana.


20/8/2005


As palavras

Solange: você levantou uma questão muito interessante. Gramática e liberdade poética.
Não vejo antagonismo entre as duas vertentes. Eu procuro escrever de forma correta, respeitando regras, uso dicionário - se for preciso. Não que eu seja engessado, mas entendo que quando se escreve para que outras pessoas leiam (principalmente no Brasil onde a educação é relegada a plano secundário) de alguma forma há uma contribuição para o conhecimento de quem lê. Tenho cuidado sim de preservar a língua. Essa é uma preocupação primordial em mim.

Por outro lado, não me sinto "dominado" pelas palavras/regras e não permito que me transformem em escravo. Mas também não as escravizo. Digamos que somos sócios nas trilhas da poesia.:) Pode ser que exista uma relação simbiótica envolvida, talvez eu seja realmente um "vampiro", como nesse poeminha:

vampiro

sou inocente
no destroçar
das veias da
poesia

quando escrevo
sangro as palavras
e entrego a
h e m o r r a g i a


Agora, não acho que "licença poética" me permita escrever "nós vai", " a gente semos" e coisinhas assim :)

20/8/2005

Ainda a palavra...

Oi Solange. Concordo inteiramente com meu xará [Manoel de Barros]. Tudo tem seu lugar na poesia e há poesia em tudo. Em qualquer objeto que você veja, vai encontrar certamente poesia.

A "pele de mariposa" é um exemplo sim, assim como outros objetos que existem nos meus poemas. Os objetos são capazes de produzir emoções, logo contém poesia. Um pássaro que voe por entre a folhagem de uma árvore, uma lâmpada apagada em um poste, um barco no mar, uma pipa empoleirada nos fios de eletricidade. A questão é enxergar e tentar transmitir nos poemas essa poesia toda.

Então posso acreditar que a poesia está nas coisas e os olhos dos poetas conseguem enxergá-la. O mesmo posso dizer do berimbau. A liberdade da corda é um canto de poesia. Por mais que o arco tente tolher essa liberdade, não consegue.

Manoel de Barros é o mestre em desinventar objetos e recriá-los com novas funções e novos sentidos. Eu penso mais em "desconstruir" objetos. Quando digo, por exemplo,

viagem

um barco
arrasta
a paisagem


Não é uma função do barco arrastar paisagens, mas desconstruindo-o e reconstruindo dando esta nova funcionalidade, posso arrastar o mundo com ele. Talvez haja uma semelhança entre "desinventar" e "desconstruir", mas o conceito básico é diferente. Tudo pode ser desconstruído, tudo pode ser desinventado. Até mesmo os seres animados.

calix

a gaivota
desenha no meio
do horizonte
o til do não

no sim das montanhas
dormem os pontos
de interrogação



31/8/2005

Sobre autocrítica/direitos autorais


A questão da autocrítica é complicada, a de reconhecer o próprio talento então.. nossa! Falando muito sinceramente eu não estou convencido que tenha isso a que chamam de talento. Me considero - e sempre disse isto - um "arrumador de palavras". Também não gosto de me denominar "poeta" . E confesso que acho o fim da picada quando alguém se assina Fulano de Tal, poeta. Parece um título acadêmico.. rs

O que eu sei é que sou muito mais severo comigo do que com o resto do mundo, Não sei se é o tal do perfeccionismo atuando ou se é o reconhecimento das minhas limitações. E concordo contigo plenamente: é muito mais fácil enxergar talento e qualidade em outras pessoas.

A questão da crítica me é bastante prazeirosa. Gosto de ser criticado. Tenho duas ou três amigas que sempre criticam meus posts no Fala Poética, normalmente por e-mail e sempre achei tudo muito pertinente. É melhor alguém te apontar erros e desacertos do que aplaudir o tempo todo. Mas espera! Gosto e preciso dos aplausos também.. rs sou humano.:)

Voltando à crítica: o que eu não aceito são ataques pessoais. Ou seja, o que escrevo está sujeito a críticas, mas eu enquanto pessoa só posso ser criticado por quem me conhece de verdade, por quem convive comigo, concorda?

E acrescento mais uma coisa que me ocorreu agora: crítica deve ser feita por quem tem conhecimento técnico e/ou sensibilidade artística para tal. Há algum tempo atrás participei de uma lista dessas em que os escritos vem formatados, cheios de luzinhas brilhantes e coisa e tal.

Alguém da lista perguntou assim: "mas isso é poesia? cadê as rimas?". Ou seja... :)

caleidoscópio I

a manhãzinha
é feito ladeira
de pedra
que formiga
nos meus olhos

sou polifônico
de palavras e sopros
do sol de agora

(a música verdeja
lá fora)



Texto publicado também em Blocos online.

Imagem: do blog principal do poeta, Fala Poética.

2 comentários:

Anônimo disse...

Sol, estou conhecendo a obra de Nel Meirelles agora, através de você. Gostei muito da entrevista e dos pontos de vista dele. Um belo poeta, que demonstra muita sensibilidade e coração na ponta dos dedos.
Com certeza estará fazendo muitos poemas no céu...

Beijos, querida.

Anônimo disse...

Conversa gostosa essa de escutar (de ler)... Definições teóricas são mais envolventes e apreendidas quando daqueles que as praticam - vêm com mais substância, carregadas de significados. Conhecer um pouco mais a arte de "arrumar as palavras" é muito prazeroso aqui nesta página, revela o olhar de poeta, explicita o próprio ato de criar.