domingo, junho 15, 2008

Memória e esquecimento


"A memória viaja leve. Não leva bagagem desnecessária."

[Rubem Alves]

Entre os antigos gregos, a memória era um dom. Mnemósine, a Memória personificada, permitia ao Poeta lembrar do passado, resgatar fatos e transmiti-los aos simples mortais por meio da poesia e do canto. A narrativa oral permitia que a memória fosse compartilhada através das gerações. Assim, os grupos que não tinham registro escrito mantiveram suas culturas.

Com o advento da escrita, os fatos não dependiam da memória humana para preservar informações. Suportes de escrita como pergaminho e papel representaram uma extensão da nossa memória. Desenvolvemos meios mais sofisticados para guardar e reproduzir a memória em textos e imagens com a invenção da imprensa, que alterou novamente a memória do indivíduo e dos grupos. Registramos os conhecimentos nos livros, que passaram a desempenhar também o papel de memória coletiva.

Através da memória coletiva, sabemos que pertencemos a um grupo com um passado em comum. Nossa identidade se constitui da mistura de experiências vividas e memórias compartilhadas no grupo. Rearranjamos, estudamos, vivenciamos novas experiências e esquecemos outras. Esquecemos para dar espaço a outras informações. Num processo natural, novas informações se misturam às mais antigas e se transmutam. Isso gera mais informações e novos conhecimentos. Assim, o passado vai construindo o presente. Aprendemos e lembramos.

Para nos ajudar a lembrar, reunimos ao longo dos séculos objetos e variados registros, criamos espaços específicos para armazenamento da memória coletiva, como museus, arquivos públicos e bibliotecas. Mas a memória nunca deixou de ser estudada. A partir do século XX, as ciências ganharam novas teorias sobre o funcionamento da memória, e esses estudos repensaram conceitos como retenção, seleção e esquecimento. A retenção nos incomoda, pois preservamos apenas parte de nossas vivências. A memória é seletiva, não é simplesmente um acúmulo de tudo o que vivemos. É preciso esquecer para não sobrecarregar a memória.

Cada vez mais arranjamos  meios para registrar e preservar a memória fora de nós. O computador e as novas tecnologias aumentaram esta possibilidade.  Podemos gravar e consultar em arquivos digitais toda a informação produzida pela humanidade. Conseguimos que os computadores tivessem mais memória que nós. Mas também temos medo deles, já que fazemos filmes e escrevemos livros o tempo todo falando sobre o domínio dos homens pelas máquinas. Desconfiamos das nossas criações, mas confiamos na inesgotável memória delas. Não mais memorizamos números de telefones, e-mails e datas importantes. Tememos catástrofes naturais, mas uma catástrofe digital seria igualmente lamentável.

internet facilitou o acesso global à informação. Os dados disponíveis nos milhões de páginas representam uma parcela bem grande da nossa memória social, agora dinâmica e navegável. O que parece ser muita informação pode se resumir a pouca, os milhões de títulos disponíveis não significam necessariamente ganho em sabedoria. A memória humana permite não somente conservar, mas filtrar, e isso a memória da internet não faz.  Também é questionável a preservação do conhecimento no ambiente virtual, pois não há garantias de que a informação ficará lá sempre.  

As novas tecnologias expandiram nossa capacidade para comunicar com mais rapidez, bilhões de páginas de informações continuam crescendo a cada segundo na internet. É uma memória infindável onde se coloca tudo. O excesso de informação nos confunde, e sua quantidade excede nossa capacidade de absorção.

Não adianta tanta informação sobre o presente se não refletimos sobre o passado. As incontáveis páginas concentram-se no presente imediato. Se procurarmos informações antigas sobre assuntos que não sejam tão populares, faremos um longo trabalho de pesquisa. Isso ajuda a distorcer a visão do mundo para os que usam a internet como única fonte de referência, pois essa grande memória parece não ter passado longínquo.

Para as novas gerações, a Escola hoje tem o papel fundamental de trazer à tona o passado, com o qual teremos lições que nos permitirão repensar o presente. Para lembrar, precisamos aprender; não há memória sem aprendizagem. E o nosso maior problema na Educação é a aprendizagem. A “Era tecnológica” pode se tornar a “Era do Esquecimento”, e toda a memória do computador de nada valerá sem a memória humana como interação. Se não aprendermos a usar as tecnologias de forma eficiente, podemos perder nossa memória coletiva. É preciso preservá-la para nós e os que virão.

Solange Firmino

Leia o texto em Blocos online, nesse link.


Imagem: Mnemosyne, Lord F. Leighton

2 comentários:

Ver@cidade disse...

É preocupante a "Era do Esquecimento" a que se refere, se a internet for tomada apenas para disseminar, infiltrar e penetrar de forma avassaladora levando a certos costumes, posturas, linguagens e culturas específicas, a ditar padrões. No entanto reconstruir os fragmentos vividos de um grupo, na escola em especial, através da narrativa, da escrita, do relembrar de imagens ou ainda da fotografia de objetos, é colaborar com a história do todo e de certa maneira filtrar o essencial daquela comunidade. Este fragmento vivido será não menos que o cotidiano de um tempo carregado de todas as dimensões do social como as relações da família, do trabalho, de gênero, a educação, a arte, a cultura, a religião, a sexualidade etc. Estas dimensões revelam-se nas vivências pessoais trazendo as memórias da humanidade e das culturas específicas. É encontrar o que de significativo existe nestas dimensões e desta forma podermos contar a história social de muitas outras formas, com riqueza de palavras e detalhes que venham a ampliar significativamente uma versão apenas, muitas vezes dita “oficial”. Podemos perceber aí uma nova intensidade na história, capaz de tornar possível uma tomada de consciência de identidade e reorganizar o presente. E aí terá valido esparramar pela internet.

Rose disse...

Sol, texto excelente e muito significativo. Vera disse tudo!
Amei a citação de Rubem Alves.

Beijos, querida.