terça-feira, fevereiro 15, 2022

Rascunho na insônia

 


Quero compor um canto de ninar

de tom sublime.

A canção mais terna,

que transcende o tempo e vai além do espaço,

pulsa em mim,

mas não consigo fazer música no descompasso de

desafinados amores,

além do mais,

desconheço notas e metáforas musicais.

 

Então tento compor uma narrativa. Navego sobre as

formas poéticas. Mas indecisa entre prosa ou poesia, pois minha prosa sempre foi presa, espero as palavras certas para reinventar versos sem rigor de métrica e rima. Minha atual metalinguagem só permite um refrão minimalista:

 

Vida.

Vida.

Vida.

 

Faço de dia um poema,

qual Penélope tecedeira,

para desfazer à noite

e refazer na insônia.

 

Desfio os novelos de Ariadne

com uma navalha que dilacera meus versos.

Rabisco no papiro tudo aquilo que o Aedo me sopra.

 

De vocabulário parco,

um poema que poeta algum escreveria revela-se para mim.

 

Não saberia recitar meus poemas,

nunca tive paciência para escandir versos,

por isso faço poucos haicais e nenhum soneto.

 

Sempre convido uma musa

para que venha velar meu sono

e trazer o ritmo,

iluminar meus dias,

ofertar os tons que me inspiram a Poesia.

 

Mexo na caixa de relíquias e ajeito conchas,

pedras, traços, cicatrizes,

retalhos desconexos,

anseios e conquistas que sustentam meu universo.

Tantas metas perdidas...

E alguns enigmas além das palavras

que me devoram como monstros.

 

Conheço a ordem das palavras nas frases

e decifro o enigma da Esfinge,

mas não aguento as Aves de Prometeu.

Fujo do Estige enquanto o trovador compõe

uma sátira em meu nome.

 

Harpias já começam a me rodear.

Mas meu ventre ainda é fértil,

não vou ceder agora.

 

Disfarço um olhar,

como se evitasse olhar a Medusa de frente.

Mas me Narciso:

miro-me e vejo máscaras no espelho.

 

Eu sou várias.

Ainda sobreviverei.

 

Já é dia, traços de luz enquadrinham o amanhecer.

Restarão estas palavras no papel.

Semente ou ovo, tudo (re)começa.

Amanhã deleto tudo e reescrevo.

Estou com sono finalmente.

 

Solange Firmino


 

No livro “Fragmentos da insônia”


📸 Victor Nizovtsev

3 comentários:

J.P. Alexander disse...

Bello poema me ha encantado. Te mando un beso.

CÉU disse...

Olá, querida Solange!

Um poema muito bem escrito e um tantinho erudito, mas vez ou outra, sabe bem ler.
Sua musa vela por você e a escrita avança e com insónia ainda melhor.
É normal escrever e depois apagar. Coisas de poetas sempre insatisfeitos.

Beijos e dias felizes.

Eliana disse...

A mente agitada durante a insônia deseja realizar mil coisas que não teve espaço no decorrer do dia. Quando o corpo faz uma pausa, ela aproveita para se manifestar.

"Eu sou várias.
Ainda sobreviverei."

Bonito isso! Gostei muito dessa leitura!

Um abraço!