Memória e esquecimento
Entre
os antigos gregos, a memória era um dom. Mnemósine, a Memória
personificada, permitia ao Poeta lembrar do passado, resgatar fatos e
transmiti-los aos simples mortais por meio da poesia e do canto. A
narrativa oral permitia que a memória fosse compartilhada através
das gerações. Assim, os grupos que não tinham registro escrito
mantiveram suas culturas.
Com
o advento da escrita, os fatos não dependiam da memória humana para
preservar informações. Suportes de escrita como pergaminho e papel
representaram uma extensão da nossa memória. Desenvolvemos meios
mais sofisticados para guardar e reproduzir a memória em textos e
imagens com a invenção da imprensa, que alterou novamente a memória
do indivíduo e dos grupos. Registramos os conhecimentos nos livros,
que passaram a desempenhar também o papel de memória coletiva.
Através
da memória coletiva, sabemos que pertencemos a um grupo com um
passado em comum. Nossa identidade se constitui da mistura de
experiências vividas e memórias compartilhadas no grupo.
Rearranjamos, estudamos, vivenciamos novas experiências e esquecemos
outras. Esquecemos para dar espaço a outras informações. Num
processo natural, novas informações se misturam às mais antigas e
se transmutam. Isso gera mais informações e novos conhecimentos.
Assim, o passado vai construindo o presente. Aprendemos e lembramos.
Para
nos ajudar a lembrar, reunimos ao longo dos séculos objetos e
variados registros, criamos espaços específicos para armazenamento
da memória coletiva, como museus, arquivos públicos e bibliotecas.
Mas a memória nunca deixou de ser estudada. A partir do século XX,
as ciências ganharam novas teorias sobre o funcionamento da memória,
e esses estudos repensaram conceitos como retenção, seleção e
esquecimento. A retenção nos incomoda, pois preservamos apenas
parte de nossas vivências. A memória é seletiva, não é
simplesmente um acúmulo de tudo o que vivemos. É preciso esquecer
para não sobrecarregar a memória.
Cada
vez mais criamos meios para registrar e preservar a memória fora de
nós. O computador e as novas tecnologias aumentaram esta
possibilidade. Podemos gravar e consultar em arquivos digitais toda
a informação produzida pela humanidade. Conseguimos que os
computadores tivessem mais memória que nós. Mas também temos medo
deles, já que fazemos filmes e escrevemos livros o tempo todo
falando sobre o domínio dos homens pelas máquinas. Desconfiamos das
nossas criações, mas confiamos na inesgotável memória delas. Não
mais memorizamos números de telefones, e-mails e datas importantes.
Tememos catástrofes naturais, mas uma catástrofe digital seria
igualmente lamentável.
A
internet facilitou o acesso global à informação. Os dados
disponíveis nos milhões de páginas representam uma parcela bem
grande da nossa memória social, agora dinâmica e navegável. O que
parece ser muita informação pode se resumir a pouca, os milhões de
títulos disponíveis não significam necessariamente ganho em
sabedoria. A memória humana permite não somente conservar, mas
filtrar, e isso a memória da internet não faz. Também é
questionável a preservação do conhecimento no ambiente virtual,
pois não há garantias de que a informação ficará lá sempre.
As
novas tecnologias expandiram nossa capacidade para comunicar com mais
rapidez, bilhões de páginas de informações continuam crescendo a
cada segundo na internet. É uma memória infindável onde se coloca
tudo. O excesso de informação nos confunde, e sua quantidade excede
nossa capacidade de absorção.
Não
adianta tanta informação sobre o presente se não refletimos sobre
o passado. As incontáveis páginas concentram-se no presente
imediato. Se procurarmos informações antigas sobre assuntos que não
sejam tão populares, faremos um longo trabalho de pesquisa. Isso
ajuda a distorcer a visão do mundo para os que usam a internet como
única fonte de referência, pois essa grande memória parece não
ter passado longínquo.
Para
as novas gerações, a Escola hoje tem o papel fundamental de trazer
à tona o passado, com o qual teremos lições que nos permitirão
repensar o presente. Para lembrar, precisamos aprender; não há
memória sem aprendizagem. E o nosso maior problema na Educação é
a aprendizagem. A “Era tecnológica” pode se tornar a “Era do
Esquecimento”, e toda a memória do computador de nada valerá sem
a memória humana como interação. Se não aprendermos a usar as
tecnologias de forma eficiente, podemos perder nossa memória
coletiva. É preciso preservá-la para nós e os que virão.
Solange Firmino
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